Precisamos falar sobre a ditadura judicial brasileira (por Débora Luciano)
*Débora Luciano / Brasil Sem Medo
O furacão que começou com as eleições gerais é só a parte mais visível da uma tempestade muito maior que vem varrendo nosso solo há pelo menos três anos. Nesse meio tempo, algumas raras, poucas Cassandras gritavam. Acredito ser a hora de escutar o que elas têm a nos dizer. Mesmo que os gregos já estejam entre nós.
A gênese do caos foi gestada em 2019, quando a Suprema Corte Brasileira instaurou um procedimento que, na prática, criou um Tribunal de Exceção, dedicado a perseguir seus inimigos políticos de ocasião. Chamado de “Inquérito das Fake News”, esse monstrengo não nasceu de nenhuma lei brasileira. Como forma de perseguição política, os procedimentos que criou estão completamente fora do ordenamento jurídico tradicional. Daí o nome, “extrajudicial”.
Não é que esses procedimentos sejam só “inconstitucionais”. Bem, eles são. Mas há um abismo que separa os assuntos que corriqueiramente discutimos como sendo inconstitucionais e o estabelecimento de um Tribunal Extrajudicial em um cantinho todo seu.
O abismo está no fato de que um Estado de Direito nasce com aquela velha noção de que “nenhum homem livre será preso, exilado ou de qualquer forma arruinado, salvo por meio de julgamento pela lei”. Foi escrito exatamente assim, em 1215, na Inglaterra, pelo Rei João Sem Terra, em um dos primeiros documentos da história escritos que tinha como objetivo limitar, formalmente, a autoridade do soberano.
Como “instituição”, esse “devido processo legal” é, obviamente, muito mais antigo, e você encontrará algo próximo dele descrito no julgamento de Sócrates, que foi julgado e condenado por ser uma ameaça para a democracia ateniense.
É certo ainda que a noção do que é um “devido julgamento” foi melhorando com o passar dos anos e o aperfeiçoamento da civilização. Mas, mesmo com os fenômenos estranhos que surgiram no processo, tudo isso ainda era melhor do que a ausência de um julgamento, o que significava, basicamente, linchamentos públicos.
Modernamente, a existência de um devido processo legal está fundamentada na separação entre investigação, julgamento e acusação. Além disso, não é dado ao juiz iniciar o processo por vontade própria, sem ser “provocado” pela acusação. Garantia do direito de defesa também faz parte das condições de existência do “devido processo legal”, o que envolve a publicidade do processo.
As tiranias, por sua vez, têm como estranha mania a constante necessidade de violar exatamente essa regra. Aleksandr Soljenítsin conta, por exemplo, que na Rússia soviética, para acelerar o expurgo dos inimigos da revolução, foi criada a VTchK, “o único órgão punitivo da história humana a reunir em suas mãos a investigação, a prisão, o inquérito, a promotoria, o tribunal e a execução da sentença”. Outra característica importante do sistema de perseguição soviética “era o fato de ser impossível apelar de suas deliberações — não havia a quem queixar-se: não existia nenhuma instância superior nem inferior”.
E tudo isso poderia ser uma piada sobre um regime que já colapsou até a chegada de Alexandre de Moraes. Nele, não há separação entre investigação, julgamento e acusação (e vítima). Todos eles se concentram numa só pessoa, o relator do procedimento. Todo o procedimento foi iniciado de “ofício”, sem o pedido da acusação. As decisões são sumárias, ou seja, tomadas sem a possibilidade de defesa dos investigados.
Nesse esquema, até 2022, cinco pessoas tinham sido presas sem julgamento, inclusive um deputado federal. Um jornalista fugiu para os Estados Unidos e a Interpol se recusa a incluir seu nome na lista dos procurados, e posteriormente deportados, por considerar que o pedido tem natureza política. Matérias de jornais já foram tiradas do ar e perfis em redes sociais suspensos.
Em 2023, já perdemos as contas.
Vocês não encontrarão grandes juristas e penalidades denunciando este regime de exceção, assim como não encontrarão, salvo raros relapsos de sobriedade, a situação denunciada nas mídias tradicionais. Assim como você não encontraria alguém espalhando a notícia de que Getúlio Vargas sofreu um acidente de carro que o deixou entre a vida e a morte em 1933. Ou como Stálin não encontrou um médico que pudesse socorrê-lo quando sofreu um derrame.
Oremos.
— Débora Luciano é advogada, mestre em Economia e professora de Literatura.
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